Por Alicia Lopes Araújo
Esse duplo fio que tece memórias e horizontes
Quase velado, há um fio que une os Apeninos lucanos ao sertão baiano: Trecchina, na Basilicata, e Jequié, no Brasil. Duas terras distantes se encontram num entrelaçamento vivo de memórias e esperanças, dando origem a um tecido de migração e identidade, arte e cultura. Aqui, os fios de uma história silenciosa e laboriosa da emigração italiana e sua transformação criativa se unem, materializados na obra do ítalo-brasileiro Sante Scaldaferri (1928-2016). Entre os maiores pintores brasileiros contemporâneos, além de gravador, ator, cenógrafo e professor, ele foi uma figura central na cena cultural baiana, capaz de transformar a memória coletiva em linguagem artística. Suas obras — expostas no Brasil, na Itália e em diversos contextos internacionais — contam o vínculo indissolúvel entre raízes e horizontes, entre o Sul da Itália e o Sul Global.
Filho de emigrantes de Trecchina — uma presença lucaniana que impactou profundamente o desenvolvimento econômico e cultural da cidade de Jequié, no sul da Bahia —, Scaldaferri é hoje reconhecido como um símbolo de um diálogo frutífero entre dois povos. Embora sua família tenha se estabelecido em Jequié, ele nasceu na capital baiana, Salvador. Quando tinha um ano e meio de idade, seu pai adoeceu, e sua família decidiu retornar a Trecchina, retornando ao Brasil somente após a morte do pai. Ele guardou poucas lembranças daqueles anos, incluindo férias em Maratea e uma estadia em Nápoles. Os laços familiares e comunitários próximos, no entanto, não são um mero detalhe: a história da colônia italiana em Jequié, a maioria dos quais veio da aldeia lucaniana aninhada entre bosques e montanhas, é parte integrante de sua identidade, assim como para muitos de nossos compatriotas no Brasil. A conferência “Jequié e Trecchina: Uma Ponte Cultural entre Itália e Brasil”, que será realizada na Sala de Imprensa da Câmara dos Deputados no dia 15 de outubro, se enquadra nesse contexto.
A iniciativa — promovida pelos deputados Christian Di Sanzo e Fabio Porta, em colaboração com a Associação de Amizade Itália-Brasil — dedica-se às relações culturais entre os dois países à luz da emigração italiana para o Estado da Bahia, com especial referência à cidade homônima, fundada por pioneiros lucanos que partiram após as grandes ondas migratórias entre os séculos XIX e XX.
Domingos Ailton, historiador e vereador de Cultura e Turismo de Jequié, palestrará no encontro. Ele está na Itália para fortalecer a irmandade entre as duas cidades e apresentar a 9ª edição da Felisquié (Festa Literária Internacional do Sertão de Jequié), da qual também é curador. Realizado de 21 a 23 de outubro, o festival deste ano homenageia a memória dos emigrantes italianos e seus descendentes, que contribuíram para o desenvolvimento sociocultural local, com o lançamento do Prêmio Sante Scaldaferri, instituído com o apoio da Prefeitura Municipal de Jequié. A premiação une a literatura às artes visuais e homenageia um artista capaz de “escrever” e divulgar a região com pincéis, madeira e tecelagem.
O Prêmio complementa uma programação que promete criar um mosaico ítalo-bayan que vá além da celebração e se torne política cultural. Os premiados serão três artistas de Jequié, que criarão obras em painéis inspirados em construções históricas construídas por italianos no município: a Casa Confiança (primeira cooperativa entre emigrantes), o Edifício Grillo (símbolo da modernidade e prosperidade da cidade) e a Fazenda Provisão (responsável pela introdução do primeiro gado de raça pura e pela organização das primeiras exposições agropecuárias do município).
Em Jequié, os italianos, muitas vezes vindos do Vale do Noce com sonhos de um futuro melhor, trouxeram comércio, manufatura, cinema e vida cívica para esta área, desconhecida até poucos anos antes. Mesmo assim, mantiveram o nome tupi original, dado pelos povos indígenas que constituem um dos pilares fundamentais da identidade cultural brasileira atual.
A construção da ferrovia de Jequié a Nazaré impulsionou ainda mais o crescimento. Assim nasceu o chamado “Sistema Trecchina”, como era definido em algumas universidades brasileiras: um modelo de cooperação entre conterrâneos que, no sertão baiano, construíram uma sólida rede de solidariedade, diferentemente do que acontecia em Salvador, onde os italianos viviam espalhados por todo o país. Muitos eram empreendedores e incentivaram a população local a plantar cacau, café e tabaco, que antes eram incultos, causando assim um impacto duradouro na região. Famílias como os Rotondanos, os Grillos, os Orricos e os próprios Scaldaferris estão presentes na toponímia e nas crônicas econômicas da época.
A trajetória artística de Scaldaferri narra uma Bahia em ebulição e a cultura popular do nordeste, com beatos e místicos, santos e romeiros, vaqueiros.
Reportagem sobre a conferência que Domingos Ailton fez em em Roma, que saiu no Observatório Romano, jornal do Vaticano.
Matéria do site: https://www.osservatoreromano.va/it/news/2025-09/quo-210/quel-doppio-filo-che-tesse-memorie-e-orizzonti.html